Maria Manuel P. Reis

Docente no Agrupamento de Escolas António Bento Franco, Ericeira

Seguida no IPO de Lisboa desde fevereiro de 2017

O dom de saber esperar

Recusei o elevador. Subi as escadas, como faço sempre, e cheguei muito antes da hora marcada. Tivera outras razões para já lá estar. Encaminhei-me para o atendimento que se triparte pelas necessidades de cada um. A minha parte, exames marcados. Apresento o cartão e explico o que me traz ali. Acrescento que me havia sido dito, previamente, que me apresentasse quando possível, na esperança de me ver despachada mais cedo.
— Vire à direita — disse o funcionário — e siga o corredor até encontrar uma sala cor de laranja.
— Obrigada — respondi. Não era a primeira vez, e sabia onde iriam procurar-me. Sequenciar o meu nome em alta voz.
Entro nessa sala de espera. Exteriormente, cor de laranja. Lá dentro relembro a faixa de azul marinho que decora as paredes. Continuo a achar bastante curiosa a diferença entre a designação que recebe e o interior que lhe vemos.
Vou para o limite da sala. A última fila, encostada à parede. À minha frente, várias filas de costas voltadas para onde me sento, vários lugares ocupados como se todos fôssemos assistir a um espetáculo. Há cadeiras alinhadas lateralmente, aproveitando o espaço disponível. Pendente, quase ao nível do teto, uma televisão ligada. À minha esquerda, uma abertura vitrificada que permite ver quem circula no corredor. Não há pessoa que passe que não sinta a tentação de verificar o aglomerado interior.

As presenças acumulam-se. Mãe e filha ocupam-se, suspensas, em jogos digitais na superfície de telemóveis. Leem-se revistas.
Uma senhora mantém-se abstrata, o seu olhar apenas fixa quem está e quem chega. Parece querer desvendar recônditos e evasões alheias.

Alguém entra, duvidando da sala cor de laranja, quando bate com os olhos nos contornos azulados. É uma pintura enganadora.
Pego no livro que trouxe comigo. Não quero senão imergir na leitura e contrariar o tempo. Releio Mia Couto. Estórias Abensonhadas é o título. Apetece-me ser abençoada e sonhar. Aprecio a reinvenção da palavra que este escritor me permite. Consigo evadir-me até certo ponto. Até ao começo daquela telenovela.
A pouco e pouco, as minhas personagens confundem-se com as outras que a televisão exibe. As vozes lidas fundem-se com as vozes faladas no ecrã.
Não se trocam conversas na sala cor de laranja. Cada presente demarca a sua ausência, silenciosamente. Aguardam pelos seus nomes, proferidos em som que se deixe ouvir. Mas para mim, a sala torna-se ressoadora. Como explicar este facto? Será talvez o eco da espera. Ou, porventura, as minhas personagens que reclamam a atenção que não lhes consigo dar. Marco a página da última descrição, do último diálogo, e fecho o livro.
Canso-me de estar depositada naquele assento. Decido sair. Do corredor, sigo em direção a um esclarecimento. Faltará assim tanto? Alguém parecendo assumir o posto de emissário, ou de mensageiro de boas novas, aquieta-me a impaciência. Há certos atrasos de inevitabilidade, mas a minha vez aproxima-se, em caminhada larga, por aquele corredor. Posso permanecer onde estou, que em breve se avistará o que ali me trouxe.

Assisto então ao momento em que trazem aquela senhora. Vem numa cadeira de rodas. O marido já previa a sua vinda. Uma manta de afastar o frio resguarda-lhe o corpo sentado. Reparo no seu cabelo grisalhado e curto. O rosto é estreito, cinzento e inexpressivo, quase incolor. Os seus olhos são dois registos secretos e intrínsecos. Desfocados, fixam o abismo, o fundo daquele corredor. Parece à beira de um precipício.
O marido consegue arrancar meia dúzia de palavras, se tantas assim foram, da sua boca semicerrada e contrafeita. Cada palavra transpõe uma barreira inultrapassável. Arrasta o que diz como se o fizesse para uma imensurável vastidão espacial e temporal.
Chama-se Maria. É alentejana, do pouco que lhe ouvi pronunciar. Senti o Alentejo pela expressão do marido, que fala, manifestando-se exaurido e quebrado. Concedo-lhe a minha consideração. Mostro-lhe o meu préstimo, no melhor que sei e consigo. A minha voz, como a tenho agora, traz uma pergunta. Respondo-a e as histórias entretecem-se. Não há uma história sem outra. Curvo-me diante do semblante da senhora Maria. Elogio o Alentejo. A sua magnificência. A relevância meridional que atingiu na minha vida. Recordo a timidez e a coragem do seu sorriso. Demonstrava a força de um gesto inocultável. É chamada antes de mim. O seu caso prioriza-se. O seu caso carcome-a interiormente. O marido, caridoso, corrói-se. Não refaço o caminho para a sala cor de laranja e sustenho a espera. Entrarei de seguida. Assim que a senhora Maria sair. Também sou Maria e não só.
Sai uma, entra a próxima. Cumpre-se o meu ritual. Submeto-me à exigência de quem me observa, de quem me questiona, de quem está ao meu lado e
executa o seu dever.

Termina a observação. Coloco a mão direita no puxador da porta. É a minha vez de a abrir diretamente para o corredor. Procuro a saída. A senhora Maria e o marido ainda acatam, com paciente resignação, o regresso a outro piso do mesmo edifício. Tantas vezes aquele edifício. Curtas despedidas. Pouco dito. O suficiente entre quem não se conhece, mas se sente irrevogavelmente familiarizado.
Boa sorte. Muita saúde. São estas as frases-chave, as que nos resumem e dizem tudo. Evito o elevador. Desço as escadas. A descer todos os santos ajudam, o que torna cada degrau menos impositivo. Sinto a ânsia da porta principal.
Encaracolo-me nos meus agasalhos e preparo-me para enfrentar o frio seco do final de tarde. O dia progrediu e sombreou-se. Não antevira o avanço crepuscular, perdida que estive.
Embrenho-me nas ruas urbanamente iluminadas desta cidade. O ar gélido e compacto enraíza-se na pele do rosto, arreganhando-a. O andar agita-se na frialdade. Já tive, para o dia de hoje, o tempo da minha espera. Terei de continuar a esperar, mas isso já será estória abensonhada para outra página do meu livro. 

IPO Lisboa,  Fevereiro 2018 

IPO Lisboa, Fevereiro 2018